Fale com as Paredes

quarta-feira, novembro 23, 2005

inocência cor turquesa

"Em frente à minha casa viviam duas meninas que continuamente lançavam olhares que me ruborizavam. O que tinha eu de tímido e silencioso tinham elas de precoces e diabólicas. Uma vez, parado na porta de minha casa, tratava de não olhar para elas, mas tinham nas mãos algo que me fascinava. Aproximei-me com cautela e me mostraram um ninho de pássaro silvestre, tecido com musgo e pluminhas, que guardava em seu intrior maravilhosos ovinhos de cor turquesa. Quando fui tomá-lo, uma delas disse que primeiro deviam tirar minhas roupas. Tremi de terror e escapuli rapidamente, perseguido pelas jovens ninfas que exibiam o instigante tesouro. Na perseguição entrei por um beco até uma padaria fechada de propriedade de meu pai. As assaltantes conseguiram me alcançar e começaram a tirar minhas calças quando pelo corredor se ouviram os passos de meu pai. Era uma vez um ninho. Os maravilhosos ovinhos se quebraram na padaria abandonada enquanto, debaixo do balcão, assaltado e assaltantes contínhamos a respiração."

(parágrafo extraído do Caderno 1 - "O jovem provinciano" de Confesso que Vivi, auto-biografia de Pablo Neruda)

terça-feira, novembro 22, 2005

oração do dia

Obrigado Senhor,
Vinícius de Moraes
existe.

sábado, novembro 19, 2005

Paredes, olha só o poema do Camões que eu finalmente decorei depois de 1 ano tentando!

Alma minha gentil que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no céu enternamente,
Viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá, no assento etéreo onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma coisa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te

Roga a Deus que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo dos meus olhos te levou.

quarta-feira, novembro 16, 2005

a pedidos de uma ruiva louca

marianamarianamarianamarianamarianamarianama
amarianamarianamarianamarianamarianamarianam
namarianamarianamarianamarianamariananamarian
anamarianamarianamarianamarianamarianamariana

domingo, novembro 13, 2005

fazia tempo que eu não copiava nenhum poema, né?

o velho homem na linha do horizonte

Lá na linha do horizonte
vocês veêm o vulto de um velho homem,
um menino-homem.
É tão simples homem,
tão usado e gasto,
com seu sapato furado
tão usado e gasto,
e seu fino trapo remendado
tão usado e gasto.

Lá na linha do horizonte
muito longe e adiante
o velho homem sorri,
todo enrrugado sorri,
quase desdentado sorri
o riso do menino.

Para quem está distante
lá da linha do horizonte,
esse riso desdentado
é um ato muito ousado
para aquele velho homem.
é um mistério invejado
daquele surrado homem.
é um segredo bem guardado
do pobre-coitado homem.

Mas lá na linha do horizonte
vocês veêm que o velho homem
de sapato furado e terno remendado
não tem como ter segredo algum guardado.
Ele é tão simples homem,
leva apenas na lapéla
uma flor azul e amarela
que é tão bela quanto é belo
o sorriso do riso do velho homem menino.


(Jorge Cambra Barbosa)

porque todas as palavras do mundo não podem explicar (você não vai entender...)

é um post pra celebrar as epígrafes das histórias e estórietas que eu não vou contar.

"A sorrir Eu pretendo levar a vida Pois chorando Eu vi a mocidade perdida Finda a tempestade O sol nascerá Finda esta saudade Hei de ter outro alguém para amar" (O sol nascerá - Cartola / Elton Medeiros)

"Que coincidência é o amor A nossa música nunca mais tocou (...) Você sonhava acordada Um jeito de não sentir dor Prendia o choro e aguava o bom do amor" (Codinome Beija-Flor - Cazuza)

"Esquece nosso amor, vê se esquece Porque tudo no mundo acontece" (Acontece - Cartola)

"Eu não sei dançar tão devagar pra te acompanhar." (Eu Não Sei Dançar - Alvin L)

"Quando você foi embora Fez-se noite em meu viver" (Travessia - Milton Nascimento)

"Para ter uma companheira até promessas fiz Consegui um grande amor, mas eu não fui feliz" (Sim - Cartola / Oswaldo Martins)

"Amor só é bom se doer" (Canto de Ossanha - Vinícius de Moraes)

é. é mesmo?

"E dou risada do grande amor" (Samba do grande amor - Chico Buarque)

HA HA HA! HA HA HA! HA HA HA! - OPS! desculpem-me...

"não vou Que eu não sou ninguém de ir Em conversa de esquecer A tristeza de um amor que passou Não, eu só vou se for pra ver Uma estrela aparecer Na manhã de um novo amor" (Canto de Ossanha - Vinícius de Moraes)

"Foi um rio que passou em minha vida e meu coração se deixou levar" (Foi um rio que passou em minha vida - Paulinho da Viola)

"Se eu ainda pudesse fingir que te amo Ai, se eu pudesse Mas não quero, não devo fazê-lo Isso não acontece." (Acontece - Cartola)

"Escuta agora a canção que eu fiz pra te esquecer" (Luiza - Tom Jobim)

"O teu amor é uma mentira Que a minha vaidade quer E o meu, poesia de cego Você não pode ver Não pode ver que no meu mundo Um troço qualquer morreu Num corte lento e profundo Entre você e eu" (O nosso amor (estória romântica) - Cazuza)

"Quem se atreve a me dizerdo que é feito o samba? Quem se atreve a me dizer? Não, eu não sambo mais em vão O meu samba tem cordão O meu bloco tem sem ter e ainda assim Sambo bem a dois por mim Bambo e só, mas sambo sim Sambo por gostar de alguém gostar de" (Samba a dois - Marcelo Camelo)

A sorrir eu pretendo levar a vida...

quarta-feira, novembro 02, 2005

18 - 20 anos

é o fim.

ontem, no ônibus que me levava pra casa da minha vó, eu tava pensando nos dois últimos anos da minha vida.

pelo telefone meu pai disse que a mulher da Livraria Cultura havia me ligado. ele pegou o número no BINA e me passou.

eu só tinha a primeira aula que era de Língüa Francesa, saí às 9h40 e decidi visitar a minha vó.
depois de ter falado com ela a primeira coisa que eu fiz foi ligar pra casa e contar pro meu pai. mas ele tinha saído. liguei pra minha mãe.

tava me sentindo diferente. acho que começou quando nós depredamos a escola no terceiro e último ano. foi a maior farra e zoeira que nós sempre quisemos fazer. todos estavam rindo, pulando e gritando, só eu não sabia direito o que estava fazendo ali no meio daquela multidão de alunos aristocráticos medíocres enquanto uma bomba de fumaça estourava numa sala de 8ª série, uma mangueira de incêndio lançava jatos ferozes contra as paredes e o professor de Biologia era fuzilado por dúzias de ovos. os risos e os gritos daqueles estudantes como os tiros de metralhadoras e explosões de granadas na Guerra Civil Espanhola. depois o silêncio no caminho de volta a minha casa. depois a brancura das paredes limpas da sala e dos quartos. finalmente o dolorido latejar de uma consciência desperta. eu tinha então 18 anos.

quando contei a novidade para o pessoal do trabalho, alguns rindo diziam que já não era sem tempo e que não me agüentavam mais, muitos me abraçaram, me beijaram, me deram parabéns e desejaram muitas felicitações, alguns outros, com um riso de sincera alegria e os olhos tristes, estavam num estado de "mas": desejavam-me felicidades lamentando, lamentavam desejando-me felicidades.

eu também tive a "crise dos 20 anos". vendo agora até que ela é divertida.

indo para casa da minha vó, no ônibus, eu pensava em tudo que tinha acontecido, em como eu tinha mudado. eu me sentia diferente e me sentia bem. nas duas últimas semanas me senti em paz como nunca havia me sentido nos últimos dois anos.

no hospital, em Marília, a Meime - minha tão amada Meime- estava com a garganta fechada pelos anos e anos de fumaça tragada incessantemente. quando falava os lábios moviam-se sem o som daquela voz que me acompanhava desde meus primeiros anos. meus ouvidos doeram. como se sentissem a mais desesperada das sedes meus ouvidos clamavam por míseras gotas daquela voz.

como de costume, minha vó e eu fomos almoçar no Mario's, uma cantina que já não era mais italiana onde minha vó vai todos os dias almoçar pela simples comodidade de não ter que cozinhar para ninguém, nem pra ela mesma. por ser um dia um pouco fora do normal ela me chamou para comermos no parte superior onde eles servem os filés grelhados que eu tanto gosto.

então eu passei no vestibular, havia ingressado na Faculdade de Letras da USP. todos ficaram tão felizes. eu era o primeiro da família a entrar na USP e mesmo que -nas palavras de muitos imbecis- fosse apenas o curso de Letras, isso parecia dar a todos ao meu redor um status a mais. mas pra mim tudo continuou normal. foi na primeira semana de aula que eu senti o *click*, que eu senti pela primera vez depois de muito tempo num colégio regido pela medíocre hipocrisia de estudantes, cujas belas carcaças envernizadas estavam vazias, senti que havia outros como eu. numa conversa por telefone com a minha mãe eu disse "eu sei que não será sempre marvilhoso, sei que haverá momentos ruins no futuro, mas, por favor, aconteça o que acontecer não me deixe esquecer desse momento, porque eu estou verdadeiramente feliz."

a Meime morreu durante a minha primeira semana de aula na faculdade, embora pra mim ela já estivesse morta a um pouco mais de tempo.

ontem no trabalho, vendo aqueles que vacilavam entre compartilhar a minha alegria e ficar triste pela despedida, eu me lembrei da Camila. a mulher mais linda que eu já vi na vida. a pele branca, macia e cheirosa, os longos cabelos finos e vermelhos, as mãos carinhosas, o corpo delgado e, sobretudo, os profundos olhos castanhos com um brilho incendiário. quando ela entrou no call center eu já era velho ali e por isso colocaram-na para fazer escuta comigo, para ouvir o meu atendimento e para ir pegando as manhas do negócio. ela fazia faculdade de moda e era a pessoas mais bem vestida que eu já vi pessoalmente. uma das primeiras coisas que eu lhe disse foi para ela não ficasse muito tempo ali, que se tivesse qualquer outra oportunidade aproveitasse a chance. isso parece que faz anos, mas foi apenas em no final de janeiro. toda vez que eu via a Camila via o quanto ela não pertencia àquele lugar, o quanto dificilmente ela pertenceria a qualquer lugar. quando eu a via dizia para mim mesmo "Eis aí um espírito livre preso numa gaiola que não pode segurá-lo por muito tempo". ela era forte demais, eu via suas asas flamejantes prontas para alçar vôo. então, dois meses atrás, ela veio dizer adeus. disse-lhe tudo isso, abracei-a fortemente e, com os olhos tristes e um sincero sorriso na boca, despedi-me dela.

em julho de 2004 eu arranjei um emprego como atendente receptivo de telemarketing. eu que sempre estranhei as conversas por telefone iria atender ligações de clientes empresarias de uma grande operadora de telefonia celular. foram duas semanas de treinamento com um grupo de 15 pessoas. eu as vi irem embora. a Melissa Ikeda, que um dia me apresentou algumas amigas numa cachaçaria e uma delas foi pivô do que hoje é uma engraçada história de como eu sou (ou fui) estupidamente burro com as mulheres. A Karina, que me ouvia fazer covers do Ney Matagrosso durante o atendimento e se rachava de tanto rir, que um dia, muito tempo depois, eu encontrei chorando com a mais pura tristeza e, que para tentar fazê-la sorrir um pouco, eu levei ao cinema e falei a maior quantidade de bobeiras que conseguia pensar. A Ana Castanheiro, e seu perfil de Cleopátra. A Mariana que até hoje acredita que eu fiquei com a Karina quando a levei ao cinema, que não tinha intimidade suficiente para isso, que me perdôo por ser estupidamente burro, que foi a minha amante.

quase ninguém acreditava que trabalhar para um chinês, num curso de reforço para filhos de chineses que moram no Brasil, daria certo. disseram que sem carteira assinada eu iria quebrar a cara logo-logo. não quebrei. dei aula e trabalhei no call center, aprendi e me diverti muito.

eu gosto de almoçar com a minha vó. gosto quando ela me dá bronca porque eu estou muito magro para o seu gosto, quando ela agoura um lindo dia de verão dizendo que vai chover sem que haja sequer um nuvem no céu.

um dia depois de quase 20 anos eu conheci meu avô paterno e entendi muita coisa sobre o meu pai.

lembro da última vez que vi a Meime. foi no natal e ano-novo de 2003/2004, depois do episódio do colégio e antes da faculdade. ela já tinha saído do hospital e passou a ceia de natal e o reveillon conosco. depois das festas o Urso foi visitar a família em Guaimbê. em Marília, a casa estava tão silenciosa que escutávamos apenas o sopro leve do vento. minha mãe estava na cozinha, eu num sofá da sala lia o "Viver para contar" do Gabito e a Meime sentada no outro sofá, pensativa, olhou para mim e, sem voz, disse "Está tudo calmo, quieto." ela sorriu e eu concordei, estava tudo em paz. "Eu gosto" ela disse.

era fevereiro e eu estava atendendo quando a vi entrar. "Caramba!, ela é bonita", pensei. ela não deu bola no começo e eu também não. depois nós ficamos. depois namoramos. depois nos amávamos. 4 meses nos versos do Drummond "O que se desatou num só momento não cabe no infinito / e é fuga e vento". o amor, sim. a mentira, também. a dor. as lágrimas, o di-la-ce-ra-men-to. a carne rasgada, o sangue jorrando e a locura das paixões de todos os sentimentos. aqueles que querem amar, que buscam o amor como o farol de todos o naufrágos, que amem verdadeiramente e que se sintam verdadeiramente amados. mas que eles também saibam, como agora eu sei, que há um preço a ser pago. saibam que o Amor é um deus que, às vezes, pode cobrar cruelmente caro o sacrifício de lágrimas e sangue em seu altar de pedra e fogo. eu sei disso e apesar de tudo não me arrependo. e apesar de tudo sou muito grato. e apesar de tudo hoje eu ainda amo. amo e estou em paz comigo. o amor. quem poderá me julgar?

ontem, na casa da minha vó, quando liguei para minha mãe fiquei feliz, não por mim, mas porque ela estava feliz. foi parecido com quando passei no vestibular e todos ficaram mais feliz e celebravam mais a minha vitória do que eu.

nesse último ano de atormenas e fúrias eu senti que a minha capoeira estava decaíndo. mas agora eu voltei ao rumos e sei que, mesmo que tenha que ficar alguns meses sem ela, ela vai continuar comigo.

numa das visitas que fiz a Meime no hospital, houve uma vez em que ela estava muito quieta, recolhida em si mesma. eu estava sentado bem a sua frente. ela então olhou para mim, seus olhos estavam escuros como o mais profundo do poços, como o momento antes do "Haja a luz". ela falou e eu li nos movimentos mudos de seus lábios a frase que primeiro me furou o peito até partir minha alma. a frase que, como nehuma outra, iluminou completamente a minha consciência. ela disse "Eu vou morrer".

a minha vó disse uma vez que conheceu meu avô um pouco antes de ele chegar ao auge. "Porque todo homem tem seu auge e eu o vi chegar lá"

o trabalho era uma merda, o sistema e a empresa em si eram pior ainda e o salário era uma vergonha para todos nós que nos sujeitávamos a recebê-lo depois de ficar escutando os xigamentos de pessoas que conseguiam a proeza de, por pelo mesmo durante 5 minutos do dia, fazer com um celular fosse a coisa mais importante de suas vidas. certa vez eu atendi um senhor que estava emputecido, estava fora de si, dizia que estava a beira de ter um enfarte e eu realmente pude sentir que era verdade. esse homem era um grande idiota e eu tive pena dele. tive pena também das pessoas que ligaram no Natal e no Ano-Novo, na Páscoa e em todos os feriados. tive mais pena dessas pessoas do que de nós que tivemos que atendê-las nessas datas. pena porque elas, se não eram medíocres, expressavam o que há de ridículo na nossa solidão coletiva. muitas vezes eu ouvi mais do que os palavrões, as ofensas, os gritos, as ameaças, as juras de maldição, ouvi mais alto o murmúrio lamentoso, o suspiro, o pedido desesperado de carência humana dos homens e mulheres que simplesmente se deixavam coisificar por um minúsculo aparelho celular.

liguei para a Livraria Cultura antes de sair para almoçar com minha vó.

e como eu briguei com o meu pai durante esse período! brigamos tanto e com tanto amor até que não restasse mais nenhuma prova contrária ao que disse Freud "O homem só pode se firmar como sujeito perante a sociedade depois de ter matado a figura de seu pai"

quando cheguei em casa ontem à noite pensei no que a minha vó disse sobre meu avô. pensei "Eu estou a caminho do meu auge e ele será maior ainda. E eu terei cuidado para quando ele acabar"

"Fernanda, eu não sei o que fazer" eu disse, "eu gosto de duas garotas lindas e as duas gostam de mim". a Fernanda me espantou com a resposta que nenhuma outra mulher daria a um cara como eu: "Fica com as duas então!" Mas foi a Mari quem me ajudou a sair do impasse, quem me mostrou que seria egoísmo demais da minha parte ficar com as duas e que se fosse assim o meu gostar era então apenas vaidade.

eu só senti o *click* depois de ter saído da casa da minha vó.

mas não é sobre o trabalho que estou falando, é sobre as pessoas. o que mais me horrorizou no telemarketing foi a desumanização. por mais que se tente tratar cada caso como único, chega uma hora em que não há mais nada de humano em nenhum lado da linha. são apenas duas vozes sempre iguais, às vezes com tons ou ritmos diferentes, sempre com o mesmo roteiro: a mesma reclamação, a mesma desculpa, a mesma ameaça, a mesma falsa cortesia, sempre o mesmo mecânico "Agradeço a ligação. Tenha um/uma bom/boa dia/tarde/noite". mas ainda assim existem as pessoas que estavam ao meu lado, que, como eu, estavam por trás da voz que o grande público apenas ouve e mal-diz. pessoas que eu vi chorar, gritar, xingar, pessoas de carne e osso e sentimentos humanos que eu fiz rir, que riram comigo, que riram de mim. gente que, como eu, esperava com ansiedade a hora em que as ligações diminuiriam de ritmo para que então pudêssemos conversar, rir, cantar. eles que me viam chegar e já começavam a rir pensando "Lá vem ele...", que me cumprimentavam, que me chamavam para sentar ao lado. essa gente estranha que, assim como eu, parecia conservar algo de infantil dentro de si e por isso adorava meus cabelos cumpridos, minha barba mal-feita, meu nariz de palhaço: Luis negão (segundo cara mais bonito do corporativo), a tia Cris, o Aristides Pinto ("o pinto! o pinto do meu pai fugiu com a galinha da vizinha..."), a Renatinha, a Helô, a Karina, o Leo, a Mari (e a nossa educativa conversa gravada sobre bernês pelo telefone da empresa), o Luis Lopes ("Luis Jiraya, boa noite. em que posso ajudar?"), a Xoxó ("Débora She-ra, boa noite..."), o Felipe, a Camila, a Myrna, o Noronha, o Andrezão, a Aninha (que tá me devendo uma caixa de bombom!), a Zenaide, a Cibele, a Fernanda, o João Mota, o Henrique Sá, o Vinícius, a Sol ("Oi, tudo bem? Você vem sempre aqui?"), o Lessandro (Guti-guti), o Calssavara, o Cravinho, a Stephany ("Wonderwoman"), a Jaciara Santana ("Eh Bahia que não me sai do pensamento"), o Sidnei (meu supervisor, que cansou de ficar bravo comigo por causa das minhas loucuras, mas que em mais de um ano nunca me tirou da sua equipe) e tantas pessoas que pra minha sorte eu trombei nessa vida desajuizada. essas gentes que têm todos os defeitos do mundo, mas que são seres humanos admiravelmente lindos.

poucas pessoas sabem que depois que a Meime morreu eu pensei nela todos os dias. durante um ano inteiro eu tive pelo menos cinco minutos de cada dia em que ficava pensando "Ela morreu e eu nunca mais vou reencontrá-la nesse mundo". geralmente uma ou duas lágrimas me choravam quando isso acontecia.

anotei o número que meu passou passou e liguei para Livraria Cultura. dei o nome de quem havia me ligado e pedi pra falar com ela.

a Fernanda apareceu na minha vida durante uma manhã em que eu estava atendendo com um nariz de palhaço no rosto. ela disse que eu parecia o cara do Cordel do Fogo Encantado e aquilo me espantou porque eu achava difícil, naquele tempo, que fosse possível que dois fãs de Cordel se encontrassem assim por acaso, ainda mais naquela empresa. houve uma tarde em que eu estava desesperado como não desejo a ninguém estar, a Fernanda, sem pedir licença pra ninguém -muito menos para seu supervisor- parou de atender e foi comigo até um lugar onde ao lado da empresa onde pudêssemos conversar em paz. ela viu as minhas lágrimas e ouviu o meu choro como pouquíssimas pessoas o fizeram na minha vida. ela segurou a minha mão com força e disse "Escuta. Aconteça o que acontecer, você vai conseguir. Vai, porque você é capaz e sabe disso tanto quanto eu. Você sabe o que tem que fazer e vai fazer da melhor maneira possível. E tudo vai dar certo, do jeito que tive que ser."

quase todo mundo sabe que na primeira noite que eu fiquei com a Mariana nós não fizemos sexo. poucos sabem que foi uma das melhores noites da minha vida.

depois do almoço, quando cheguei em casa para pegar a carteira de trabalho, liguei para o Johnny. contei para ele a novidade. precisava dividir esse momento de alegria com todos aqueles que eu amo.

eu a amava. ainda a amo. e para mim ela era mais linda depois do sexo quando repousava sua cabeça no travesseiro ao meu lado e nós ficavámos nos olhando. seus olhos então abriam-se como em nenhum outro momento e lá dentro eu me encontrava. nesses instantes, nós erámos um.

estava no ônibus indo da minha vó para casa porque precisava pegar minha carteira de trabalho.

eu também tive um caso com a Ana, minha amiga da fculdade. foi a primeira vez que eu fiquei com uma garota por quem estava apaixonado. fico feliz por ainda sermos amigos.

depois que comecei a trabalhar, fiquei quase um ano sem ver a minha mãe e o Urso, mas os dois sempre estiverem muito presentes.

a moça da Livraria Cultura disse que a vaga que estávamos esperando abriu e que se eu aceitasse ela seria minha. falou para eu passar lá na quinta-feira e pegar a lista de documentos, provalvemente eu começaria em duas semanas, mas eles poderiam me esperar mais algum tempo já que eu estava trabalhando. disse que não era preciso mais tempo, que resolveria tudo ontem mesmo.

eu mudei muito, sou mais paciente, tento ser menos teimoso, aprendi a rir de mim mesmo mais do que qualquer outra pessoa e faço do meu riso a minha resistência contra uma vida medíocre e coisificada.

no ônibus, indo para casa eu pensei "Vou passar em casa e pegar minha carteira de trabalho antes de ir para o trabalho. Vou pegar minha carteira porque eu vou pedir demissão" *CLICK* "Caralho! EU VOU PEDIR DEMISSÃO!"

e foi mais ou menos assim que algumas coisas começaram e outras acabaram. muitas delas começaram no exato instante em que outras acabavam e vice-versa.